Categoria: Vida

Sobre o fim de Uri

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Ontem, em um dos capítulos mais intensos e fantásticos da novela Os Dez Mandamentos, Uri encontrou seu fim. As últimas cenas de Uri foram tão profundas e impressionantes que eu não poderia deixar de comentar. Depois de fazer o ridículo papel de homem-abajur durante a nona praga, Uri chegou ao anúncio da décima praga ainda se iludindo com a possibilidade de continuar no palácio. Mergulhado em dúvidas e medo, ele ainda se apegava ao que podia ver. Reconhecia o poder e a autoridade do Faraó, por causa do brilho das pedras, mas se recusava a crer no poder e autoridade de Deus.

Uri não representa apenas os materialistas, mas também aqueles que ficam com um pé na igreja e outro no mundo. Querem ser salvos, mas querem mais a honra dos homens. Não querem sacrificar. Não querem o deserto.

Eu disse no outro post que Uri era escravo. E, em suas últimas cenas, ele mostrou que eu estava certa. Escravo do medo, escravo da dúvida, escravo do que seus olhos podiam ver. Por um momento, ele cedeu. Até o último dia, se apoiava na esperança de que a praga não viesse tirá-lo do comodismo. Porém, a família veio avisá-lo de que a morte viria naquela noite. Ele, mesmo relutante, aceitou partir com eles para a vila.

No momento em que todos estavam felizes (tadinhos!), ele disse que, primeiro, iria ao palácio buscar suas coisas. A família insistiu para que ele deixasse tudo para trás e os seguisse. Porém, ele insistiu. Nesse momento, meu marido disse: “ih, ele vai morrer”. Porque era possível ver naquela insistência o medo de deixar tudo para trás. Estava claro que, se voltasse ao palácio, não teria coragem de sair.

Quando Deus chama, o certo é seguir imediatamente, sem olhar para trás. Caso contrário, acontece o que aconteceu em seguida. O rei soube e mandou chamá-lo. A conversa que se seguiu foi absurda. O rei fez a legítima proposta do diabo para Uri. Tentou convencê-lo de que a praga não viria, de que não adiantaria fugir e acenou com a proposta de aceitar sua família de volta no palácio, tudo o que Uri queria!

E não é exatamente isso o que acontece com a gente? Quando decidimos seguir o que é certo, primeiro toda a resistência se levanta. Se a pressão não funciona, o mal tenta acordos. Vai acenar justamente com o que você mais desejava. E foi esse o engano que enredou Uri. A partir do momento em que surgiu uma possibilidade a que ele pudesse se agarrar, Uri engatou uma sequência de erros. Delatou os hebreus, traiu a família, e, quando se deu conta da bobagem que fez, colocou remorso no lugar do arrependimento, se culpou e decidiu ficar no palácio!

No fundo, ele sabia que a praga viria, mas o medo e a dúvida o cegaram. O amor pela família não foi mais forte do que o medo de sacrificar a vida antiga. Em um último segundo de lucidez, ele pega suas coisas e ameaça sair, mas olha para trás e não tem coragem. Deu uma agonia imensa vê-lo voltar para a cama, decidindo ficar, sabendo que aquele seria o fim. Deu vontade de sacudi-lo.

Uri não precisava morrer. Ele era hebreu, ele tinha informação de como se salvar, ele até ajudou a salvar outra família — a de Chibale. Ele viu seus amigos egípcios sacrificarem tudo para ir com os hebreus. Ele sabia o que tinha de fazer, mas não teve coragem.

A história de Uri é uma excelente metáfora da história de muitos de nós. Um homem que tinha tudo para ser feliz, mas que cavou sua própria destruição por não saber valorizar o que realmente tinha valor. Estava apegado à sua velha vida, sem perceber que o prazo de validade já tinha vencido. E sem perceber o presente que tinha nas mãos: a chance de descobrir uma nova vida, ao lado da família e de pessoas que realmente gostavam dele pelo que ele era, não pela posição que tinha.

Infelizmente, hoje há mais Uris neste mundo — e nas igrejas — do que eu gostaria de admitir. Quem vive mergulhado em dúvidas não tem como ter um final feliz. Troca a salvação por um punhado de papel, por uma posição, por um relacionamento, por um vício, por uma zona de conforto quentinha, por uma ideologia, pela glória que vem dos homens. Aposta sua vida em um jogo insano no qual é impossível vencer. Preso ao que não tem o menor valor, Uri se permitiu cegar. Ele não enxergava sequer o que não podia ser negado.

Uri foi avisado que aquela seria sua última noite, mas não creu. Você não sabe quando será sua última noite. Pode ser esta. E será que não está fazendo exatamente o que ele fez? Em vez de seguir sem olhar para trás, será que não está se apegando ao que não tem o menor valor e negligenciando o mais importante? Será que o orgulho, o medo e a dúvida irão vencer a guerra pela sua alma, pelo seu futuro? Só se você quiser. Só se, conscientemente, se deitar para dormir no momento em que deveria se levantar e, com coragem, seguir adiante.

Fiquei dividida entre a raiva e a indignação pela burrice de Uri, o profundo pesar pelas escolhas erradas (é difícil ver alguém caminhando para o precipício) e uma identificação mais profunda ainda, porque, de certa forma, já fui Uri. Felizmente, no último momento, não olhei para trás. E sou muito grata por isso. Então, volto a sentir um pesar ainda mais intenso. Dessa vez, não pelo Uri, mas por tantas pessoas reais que têm agido como ele, com a mesma cegueira, com a mesma intransigência. O que podemos fazer é passar a informação e orar por elas, torcendo para que sejam mais inteligentes do que Uri foi.

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PS: E a cena da morte dele? Que cena foi aquela? Quase perdi o fôlego junto com aquele último suspiro. Nem sei explicar o quanto foi forte toda essa história.

Por que não oramos pelos mortos

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Apesar do que diz um hoax espalhado por aí, a Universal não faz oração pelos mortos no dia dos finados (nem em dia nenhum). Não há na Bíblia nenhuma indicação de que deveríamos fazer. Pelo contrário, diz que todas as chances de salvação se encerram com a morte e que não há mais possibilidade de ser ajudado depois que sua vida acaba. Há céu e inferno, nenhum lugar intermediário. E não se pode passar do céu para o inferno ou vice-versa. A situação após a morte, seja ela qual for, é imutável.

Mas, se a Bíblia é contra essa prática, de onde isso surgiu? Essa, especificamente, veio de uma tradição pagã celta. Durante o festival de Samhain, que ia de 30 de outubro a 2 de novembro, as pessoas homenageavam os mortos e os deuses que, para os celtas, também eram seus ancestrais. O cristianismo iniciou sem nada dessas coisas, mas depois que foi institucionalizado e absorvido pelo catolicismo, começou a fusão com práticas pagãs. Assim, o festival de Samhain se dividiu em Dia dos finados (homenagem aos mortos) e Dia de todos os santos (homenagem aos deuses).

Como sempre digo, é importante saber por que você faz as coisas que faz — antes de decidir continuar ou não fazendo. A base do ato de orar pelos mortos está na crença de que existe o purgatório, um lugar intermediário, entre o inferno e o céu, para onde a pessoa iria purgar seus pecados até poder entrar no céu. Convenientemente, seria necessário pagar missas, fazer orações e comprar indulgências, caso quisesse sair mais cedo do purgatório.

Se cremos que a Bíblia deve ser respeitada como base para a nossa fé, não cremos no purgatório, já que ela é bem clara quanto a haver apenas o céu e o inferno como destinos finais da alma, e não cita purgatório algum*. E, se não cremos no purgatório, não faz o menor sentido orar pelos mortos. Deus não ouve essa oração, pois ela não tem fundamento. Se Deus não ouve essa oração, para quem você está orando?

A cultura é tão arraigada aqui no Brasil que há cristãos protestantes que visitam túmulos nesse dia. Alguns se sentem culpados se não o fizerem. Sou contra essa prática, primeiro por ser originada de um culto pagão (o que, por si só, já mostra que tipo de influência espiritual rege essa celebração). Segundo, porque não creio que, espiritualmente falando, faça bem a alguém visitar o túmulo de um parente morto. Primeiro, porque a pessoa não está mais ali. Segundo, porque não vai adiantar orar por ela – muito menos acender velas. Terceiro, porque vai trazer de volta à sua memória tudo o que você viveu e isso fragiliza emocionalmente. A fragilidade emocional é uma porta aberta para o mal que vem desenterrar culpas, dores, mágoas e tristeza.

O período do luto é importante, para processarmos a perda. Mas ele deve acabar pouco tempo depois da morte da pessoa e não ser renovado uma vez por ano. O que você tem de fazer pelos seus parentes, faça enquanto estão vivos. Depois de mortos, não vai adiantar esforço algum para aplacar sua consciência levando flores ao túmulo e tendo conversas post-mortem que não teve durante a vida.

Lide com o fato de que você fez o que sabia fazer com os recursos que tinha. Por exemplo, hoje eu teria outro tipo de relacionamento com o meu pai. Mas, quando ele morreu, eu não sabia o que sei hoje. Então, o relacionamento que tive com ele foi o que eu sabia ter. O que me resta é fazer o meu melhor por quem está vivo hoje. E ensinar outras pessoas a entenderem seus próprios pais e não exigirem deles mais do que eles têm condições emocionais de dar.

Lutamos por outro tipo de mortos: aqueles que, apesar de ainda respirarem, terem um corpo e caminharem por este mundo, estão longe de Deus. Porque, se Deus é vida, quem está longe dele está morto. Por esses mortos vivos ainda podemos orar. Eles valem nosso esforço. Eles valem nossas noites em claro, nossas orientações, nosso direcionamento. É por eles, os sofridos deste mundo, que oramos e lutamos. É pelos que vivem angustiados, deprimidos, desanimados e cansados que buscamos.

Esses vivos mortos podem tornar a viver, por isso, lutamos por eles. E não acendemos velas por eles, mas acendemos nossa própria luz, para que nos vejam e enxerguem o caminho. Ao ganharem vida novamente, isto é, ao terem uma experiência pessoal com Deus (não uma experiência religiosa), tudo mudará. Serão vivos. E, quando o corpo morrer, eles continuarão a viver, pois estarão com o Autor da vida. É isso que significa “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê em Mim, nunca morrerá” (João 11.25,26).

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*Antes que algum católico surja do além aqui citando Macabeus para dizer que há base bíblica para a doutrina do purgatório, explico: Macabeus é apócrifo e não faz parte da Bíblia original (e nem da que utilizamos hoje, está presente apenas na Bíblia católica, à qual foi acrescentado). O próprio autor do livro sabia que ele não era divinamente inspirado, tanto que escreveu: “…finalizarei aqui minha narração. Se ela está felizmente concebida e ordenada, era este o meu desejo; se ela está imperfeita e medíocre, é que não pude fazer melhor” (2 Macabeus 15).