Categoria: Vida

Uma taça de vinho ou um copo de água?

 

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Uma das coisas de que mais gosto na novela Os Dez Mandamentos é o conteúdo dos diálogos. Todos os dias somos presenteados com discursos profundos, mas que soam naturais. Incrível como a autora conseguiu colocar Moisés anunciando as pragas ao Faraó (e Faraó respondendo) às vezes dizendo versículos inteiros, com a linguagem bíblica, de forma totalmente natural e se encaixando no contexto.

Quando Faraó, ao pedir o fim da praga dos gafanhotos, pede “tire de mim esta morte”, eu, sempre que lia, achava meio exagerado. Sempre estranhei essa frase, mas na novela, com todo o contexto, ficou muito natural. Excelente trabalho de direção, de atuação e de toda equipe, sem dúvida. Mas o texto se encaixar é fundamental.

Então, hoje tivemos uma conversa entre o cozinheiro Gahiji e Homem-Abajur Uri sobre a diferença entre a “alegria” que se vive no palácio e a alegria que eles experimentaram entre os hebreus. Uri, que, mesmo depois do papelão ao qual se submeteu durante a nona praga, ainda não se convenceu de que não é egípcio e seu título de nobreza não vale coisa alguma, tentava argumentar com Gahiji que a vida no palácio é melhor que a vida dos hebreus.

Em certo ponto da conversa, o cozinheiro do Faraó diz que a alegria dos hebreus é muito mais profunda que a dos egípcios e explica: “Para ficarmos alegres, nós precisamos tomar vinho!”. Para mim, essa frase sintetizou a diferença entre a “felicidade” superficial e ilusória que o mundo oferece e a paz interior que tem quem vive pela fé.

Não vejo problema prático em alguém gostar do gosto de vinho, cerveja, licor (embora, por ter paladar extremamente apurado, eu ache qualquer bebida alcoólica horrorosa), etc. O problema é que em 99% das vezes as pessoas não bebem porque o gosto do troço é bom. As pessoas bebem porque querem se sentir bem. Elas precisam da sensação que a bebida traz. E, muitas vezes, confundem apreciar a sensação com apreciar o sabor. Sentimentos, emoções e estímulos sensoriais têm o péssimo hábito de se entrelaçar e se confundir, mesmo.

Mas isso não acontece apenas com bebida alcoólica. Acontece com tudo o que estimula sensorialmente e gera uma sensação agradável ou emoção positiva. Ainda que seja rápido. Ainda que por alguns instantes. Ainda que cause sequelas desagradáveis. Música. Danças. Namoro. Sexo. Internet. Remédios. Passeatas. Compras. Festas. Drogas. Filhos. Religião. Livros. Viagens. Trabalho. Comida.  Nem todas essas coisas são ruins; algumas são até muito boas e necessárias. O problema é que a maioria as utiliza como um gatilho de alegria momentânea.

Muitos apoiam sua felicidade em coisas, momentos e pessoas. Acreditam que alegria é um sentimento e, por isso, vivem em uma gangorra emocional angustiante. Já passei por isso e, por um lado, entendo o fato de Uri não entender a descoberta de Gahiji. Meu estado constante era de melancolia, entrecortado por momentos esporádicos de alegria. E, para piorar, o mundo dizia que era assim que as coisas tinham que ser.

Em um daqueles ditados que a gente não sabe de onde vêm, mas que as pessoas tomam como verdade incontestável, eu ouvia que “não há felicidade, o que existem são momentos felizes”. E — dizia o mundo — o jeito é se conformar com isso.

Uri não conhece nada diferente e se conformou com isso. O vazio que existe dentro dele é compensado pelo brilho das pedras do palácio. Gahiji, que sempre esteve em busca de algo melhor, não se conforma com o vazio. Ele conhece a felicidade trazida por uma comida saborosa e bem preparada. Mas sabe que a alegria de um banquete desaparece assim que a barriga se esvazia. Uri conhece a alegria trazida por uma joia bonita. E o engano dessa alegria é que ela depende do que os olhos veem. E os olhos mantêm por mais tempo a ilusão.

Gahiji percebeu nos hebreus uma alegria que independe do que se come e do que se vê. É como a água que Jesus ofereceu à samaritana: “quem beber da água que Eu lhe der, jamais terá sede”. A pessoa que conhece essa nova forma de viver, não depende mais de estímulos sensoriais, de sensações, de emoções.  Alegria profunda e paz interior como estado constante, a certeza de que absolutamente nada poderá destruir o que você tem dentro de si, pois se fortalece a cada luta, a cada dificuldade.

Trocar o vinho da alegria passageira pela água que extingue a sede eternamente pode ser uma decisão difícil quando o que se vê é apenas um copo de água e uma taça de vinho. Mas quem consegue perceber o que está por trás de cada uma dessas escolhas, sem se guiar pelo que seus olhos veem ou seu corpo sente, descobre o quanto vale a pena.

A lição do Homem-Abajur

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Uri, o Homem-Abajur

Assistindo à novela “Os dez mandamentos”, fiquei realmente revoltada com a situação de Uri. Como único hebreu do palácio, só ele conseguia manter uma tocha acesa durante a praga das trevas espessas. Ele passou o capítulo inteiro de Homem-Abajur, achando que, assim, conseguiria provar sua fidelidade ao rei. Que papelão! Se humilhando e sendo humilhado por não querer abrir mão do comodismo.

Uri não aceitou ir para a vila com sua família, preferindo ficar no palácio, vivendo a ilusão em que acreditou a vida inteira. É óbvio, para quem acompanha a novela, que as pragas estão aumentando o abismo entre os egípcios e os hebreus e eu não duvido que ele acabe expulso do palácio ao fim da última praga simplesmente por ser hebreu.

Muitos se iludem com a falsa sensação de bem-estar e, como Uri, se submetem a situações pelas quais não precisariam passar. Por orgulho, covardia ou falta de visão. O caminho para uma vida melhor é estreito, muito estreito. Não há liberdade sem uma boa dose de sacrifício. A zona de conforto pode parecer quentinha, mas se derrete.

Quando a pessoa não entende a lógica do sacrifício e acha que pode encontrar uma forma de ficar segura e escapar do deserto pela força do seu braço, não percebe que está se enfiando em uma grande enrascada. Porque o melhor da travessia é o deserto. É nele que a gente cresce. É ele que prova quem é quem. É ele que fortalece mesmo os mais fracos. É passando por ele que aprendemos a confiar.

Não estou aqui advogando em favor da dificuldade. Muito menos dizendo que é legal ser pobre. Muito pelo contrário! O que Uri não enxerga é que ele não é livre. Ele não é nobre. Para os egípcios, ele sempre será um hebreu arrumadinho que eles toleram porque, enfim, é joalheiro do rei. Uri pensa que seu talento seria desperdiçado no deserto. Isso se chama falta de visão. Ele quer, com sua visão de formiga humana, definir o que é ou não possível e os limites de Deus. Porém, dessa maneira, ele só limita a si mesmo.

O quanto poderia ser útil se fosse com seu povo! Lembre-se dos spoilers da Bíblia: Bezalel e Aoliabe foram escolhidos por Deus (chamados pelo nome) para fazer a Arca da Aliança e os utensílios do Tabernáculo e contaram com a ajuda de outros hebreus. Uma grande honra para qualquer pessoa estar no meio desse grupo para fazer uma obra tão maravilhosa (e que acabou sendo registrada no maior best-seller de todos os tempos).

Ele não quer arranjar encrenca com o rei e realmente acha que, se ficar na dele, subserviente, tudo voltará a ser como antes. Mas entenda uma coisa: depois que começa a batalha (e já começou há milênios, se é que você não percebeu), não há muro sobre o qual se empoleirar. Não há muro. Cedo ou tarde, vai ser preciso se posicionar. Espero que não resolva agir tarde demais.

Uri limita seu crescimento pelo medo, pela acomodação. Caminha para o abismo, achando que está seguro. A cada passo, seu mundo desmorona e ele amarra a venda sobre os olhos, ainda mais forte, para não ver o óbvio. O inevitável. O que Uri não enxerga é que os hebreus não são mais escravos. O escravo, na verdade, é ele.