Anotação misteriosa

Encontrei esse texto de 2007, da minha coluna na falecida Revista Paradoxo.

 

Anotação misteriosa
O tempo apaga tudo
por Vanessa Lampert de Porto Alegre[17/01/2007]

Em visita à casa da minha avó, descobri uma velha caderneta de anotações, aparentemente pertencente a uma das minhas tias, embora contenha a letra de uma porção de gente. Uma única data: 13 de maio de 1973, cabeçalho de um texto que nunca foi escrito.Um imenso número de folhas vazias e, lá pelo meio, rabiscos de crianças, desenhos de adultos, números de telefone e algumas anotações esparsas. Uma delas me chamou a atenção. Era uma carta, de alguém para alguém, sem assinatura, sem data, sem muitas pistas. Minha mãe não reconheceu a letra, nem grande parte dos nomes, e a história permanece uma incógnita, a amarelar-se pelo tempo. Transcrevo aqui, para relatar meu espanto.

“André avisou-me que Tuco quer nos colocar longe da Geida. Pedrinho acha que ‘eu’ influencio Geida ao desquite. Tuco já pediu que eu afastasse aos poucos e falasse para você fazer o mesmo, que ele acha que Geida, ficando só, volta para ele. Isto é ‘tara’, o homem é perigoso. Eu acho que no caso nós não devemos nos afastar de maneira nenhuma, pois ela fará uma loucura. Mas o perigo é que ele pode nos prejudicar de algum modo, não é? Já pensei nisso, pressinto algo bem horrível, já pensei até que ele poderá falar com meus pais, estou desesperada. Geida não quer que a deixemos em hipótese alguma, chorou e se agarrou a mim, ela prefere que Tuco a mate. Ela está querendo viajar agora! 

Suely…e agora, o que vamos fazer? Tenho medo dele. Vamos pedir a Deus que nos ajude. Vamos falar com o Felix, também, sei lá… nem sei o que penso. Ele no desespero que está é capaz até de matar. Geida está me esperando lá fora, por favor, depois do culto vá à casa dela, ela fica desesperada só em pensar que você pode se afastar.
Tchau e até lá”.

Suely pode ser uma das primas de minha mãe, o Pedrinho, talvez, o tio dela, a dona da carta provavelmente seja minha tia, e o Felix era tio da minha avó. Apenas essas pistas. Não sei quem é Geida e Tuco e nenhuma desgraça houve na família com essas pessoas. Um problema enorme, que torturava a remetente da carta, desesperava a pobre Geida, perseguida pelo ex-marido, e ameaçava uma série de vidas, hoje não é nada.

A vida passa rápido. O que na época era uma desgraça assustadora, hoje é apenas uma anotação misteriosa em uma folha amarela cheirando a barata. Sem assinatura, sem data, sem continuidade, um problema esvaziado pelo tempo. Trinta anos passaram depressa, carregando o que encontraram pelo caminho, sem medo, sem pena. O tempo apaga, muda o sentido, altera a importância.

Olhei para a minha vida, para meus problemas enormes e insolúveis, para minhas cartas desesperadas a um destinatário mudo qualquer e achei graça. Vi meus dramas reduzidos a anotações sem importância, apagando-se pelos dias, histórias que a história despreza. Não vale a pena agarrar-se a coisas tão pequenas, enquanto o tempo continua passando, a amarelar nossas folhas vazias. Nosso tempo, por mais longo que seja, é curto demais para que o gastemos à toa. O bilhete que Suely nunca recebeu me lembra de que devo levar a vida de forma mais leve, porque tudo, absolutamente tudo, passa.

Graças a Deus.

A sociedade da preguiça

Dia desses, vi o anúncio de um telefone celular, que orgulhosamente divulgava algo como: “Você não precisa tocar no celular, ele obedece à sua voz”. Fiquei tentando entender qual seria o problema de tocar no celular.

Esta semana me surpreendi com outro anúncio “fantástico”: “Com o objetivo de facilitar a vida dos usuários” (vida difícil a de apertar um botão), a empresa x (não vou fazer propaganda) fez alterações em sua nova linha de Smart TVs” (Smart TV= TV esperta. O que significa que a minha é burra). Os usuários poderão “voltar à tela anterior e fazer uma pausa no vídeo apenas movimentando o dedo no sentido anti-horário (…) Os comandos de voz terão funções reduzidas, como a mudança de canal, que será realizada simplesmente dizendo o número, sem precisar falar ‘Mude o canal’”.

Só eu acho isso bizarro? Não, não sou contra o avanço da tecnologia, é realmente incrível que uma TV faça tudo com tão pouco. O problema é que os aparelhos estão ficando mais inteligentes para que a sociedade fique cada vez mais burra.

É provado pela neurociência que quanto mais você usa o seu cérebro, mais ele se desenvolve. Então, quanto menos você usa o seu cérebro, menos ele se desenvolve. A nossa sociedade está caminhando para um emburrecimento em massa e os poucos cérebros que ainda funcionam se dedicam a criar engenhocas que tornem possível aos demais cérebros se acomodarem em sua preguiça. Vivemos a cultura da preguiça mental, das informações superficiais, das facilidades que criam mentes flácidas que sequer sobreviveriam se tivessem que viver há cem ou duzentos anos, sem computadores, geladeiras e smartphones.

As pessoas vêm sendo treinadas a não se esforçar mentalmente para absolutamente nada, a não sacrificar por coisa alguma. Querem que tudo caia do céu por um simples comando de voz. Estão condicionando suas mentes a um estado de embotamento e dependência. Esse “treinamento” tem se estendido até ao sistema educacional, fazendo com que pessoas consigam alcançar altos níveis de escolaridade com pouquíssimo uso do cérebro. Seres cujo máximo esforço feito será girar o dedo em sentido anti-horário. Escrever, ler e pensar serão atividades restritas apenas àqueles que desejam dominar e manipular essa massa.

Uma sociedade assim torna-se um exército de zumbis pronto a obedecer ao que a grande mídia determinar. Pronto a seguir o líder que ela apontar. Sem pensamentos próprios, sem senso crítico, repetindo os pensamentos de outros, com suas mentes derretidas pela indústria do entretenimento e pela lei do menor esforço. O pior é que sequer se dão conta disso e ainda ficam bravos se alguém sugere que sacrifiquem seu tempo, esforço e vontade por alguma coisa, por maior que seja.

Cabe a cada um de nós, heróis da resistência (pelo menos é assim que eu me sinto), remar que contra a correnteza e manter o nosso direito de exercitar nosso cérebro, desenvolvendo nossas próprias opiniões e ajudando os que querem ser salvos desse entorpecimento, lhes ensinando o maravilhoso caminho de enfrentar e vencer desafios. Porque se o preço de “facilitar a vida” é se tornar parte do exército de mortos-vivos, meus amigos, eu sempre vou preferir o sacrifício.

 

*Publicado na coluna “Ponto de vista” da edição 1136 (12 a 18 de janeiro de 2014) do jornal Folha Universal

 

PS: Como recebi mensagens de pessoas achando que eu estava criticando os aparelhos eletrônicos, acredito que tenho que explicar que o texto não está criticando a tecnologia moderna. Na verdade, a tecnologia moderna só tem se moldado à preguiça mental da sociedade (que quer nos convencer de que temos de buscar “mais facilidade” e “mais praticidade”) e ninguém acha isso estranho. Sem aparelhos mais inteligentes, seria bem difícil viver preguiçosamente, mas eles não são a causa do problema, são apenas consequência. Eles vêm substituir as funções mentais que estão deixando de ser usadas. E isso é o mais preocupante, pois não se resolve boicotando a nova tecnologia. Se elas continuassem a ser usadas mesmo com a presença dos aparelhos, não haveria problema algum.